— Oui, dit' elle d’une voix mélancolique 

 

um gato com um homem pela tr 

ela 

saiu a cavalo de outro homem 

para renovar a nesga de abismo 

que o fazia crer no mundo 

nas quedas da jan 

ela 

de bico ao chão 

quando acordava 

nos dias com asas  

na noite sem pausa 

por onde se passa de lado 

costas com costas de pedra 

(em fundo  

música 

pelas cordas de uma musa menopáusica 

o sexo agarrado ao vestido 

sexo de pássaro sem cor) 

 

uma mulher moreia 

cabelo de rede e de algas 

estendeu-lhe a mão 

o homem tomou-a e fez-se caverna 

coberta por flores de areia 

o gato ousou assomar-se 

e com uma voz imprecisa 

desenhou um mapa no chão 

flores jovens despontam dentro da terra

umas ainda botão
fortes
deter
minadas
perfuram (verdes)
c
amadas
muitos metros de horas armadas
metros de tempo em torrões

outras nascem com pétalas secas
e espinhos que quebram como palavras
no caminho que perseguem 
só cresce o caminho de volta

outras desfazem-se em sementes
e cada semente desfaz-se em muitos dias
um por cada passo em frente

há flores que não desabrocham
morrem jovens e invisíveis
aos olhos de quem aprecia flores

e há pessoas com flores nos olhos
e flores no colo e flores no peito
flores claras na ponta dos dedos

e pessoas que são t
erra
sem flores
ofício

prefiro o silen 
cio
ao cifonismo
que é hoje 
e só hoje
palavra do dia 
(no priberam)

prefiro as moscas à merda
o mel à manteiga
e o junco à rã

os silêncios viscosos
guardo-os em cestos de vime
bio
degradáveis

enterro-os e espero
de boca fechada

mas digo sempre «obrigada»
cama de gato

já não são largas trincheiras os corredores do mundo
nem alçapões sem fundo
nem vórtice nem vértice nem vertigem nem margem 
agora as mudanças de tempo fazem-se anunciar no palato
vêm em ondas adocicadas de contentamento
sem rebentação
e espraiam-se pelos ossos
com risinhos certeiros apontados à medula

ainda me equilibro nas estacas para andar sobre as marés
como um gato que insiste que sabe voar
ou como um gato que voa
ou como um gato que dizem que voa
ou como um gato a quem dizem que podia voar se quisesse
ou como um gato que dorme
debaixo da língua
sem sede sem fome
e sem nome
tapumes
ninguém me disse que o coração se abria com uma micro chave sextavada
com nove pontas de precisão
talvez por isso andasse a dormir ao lado da cozinha
e a sonhar com la
gosta suada
(prato que nunca fiz por pudor de meter outro bicho que não eu própria numa panela de água a ferver)
pesadelos às prestações

também ninguém me disse que a gaiola que resguarda o coração
não tem porta
talvez por isso de nada me tenha servido
o pé de cabra que guardo atrás da porta de casa
nem o lenço da cabra cega
nem a cábrea que ainda me ampara
trago os bolsos cheios de pessoanas pedras
que converti em seixos com as minhas mãos
hei-de de saber atirá-los em arcos perfeitos a perder de vista
sobre um espelho de água impossível de partir

preia-mar
levamos
uma mão cheia de dias
entre o côncavo das nossas mãos
uma mão cheia de luzes e ausências
escoltadas por janelas simétricas
uma mão cheia de estradas
uma mão cheia de saídas
uma mão cheia de sinais
uma mão cheia de conchas
uma mão cheia de sóis
pelo longo passadiço de madeira tratada























Kate Castelli, “The Hard Way”, woodblock on book covers
kokedama 
tenho uma oliveira
presa por fios
que morre sempre que 
eu morro 
o meu nome
insuflado de seiva
insiste em rebentar
à minha revelia
em falhas
folhas
pequenas
redondas
promessas
de teimosia

fui sempre a peça do puzzle que não encaixa
tenho as elipses viradas para dentro
sou peça non grata

carta

disseste que ias ouvir o mar
que lhe ias pedir uma coisa
já que era tempo de lua nova
de marés vivas
e eu andei com a letra do sting na cabeça um dia inteiro
à falta de melhor debussy
a expurgar imagens cheias de filtros ruído e camadas
imagens excessivamente retocadas que se sobrepunham
à imagem nua da tua mão 
a escrever duas linhas
a sublinhá-las
a enrolá-las
e a metê-las 
na garganta de uma garrafa






1.º de maio

farta até à cona
de cães sem cadastro
de gente sem lastro
de gente sem luz
de gente sem lente
de gente dormente
de gente decente 
de gente que mente
de gente gemente
de gente que mia
de gente acendalha
de gente canalha
gentalha fervente
em banho maria





neve nas terras altas
o frio parece que voltou
voltaram os cumes glaciares e as estalactites de gelo
como silên
cios
que escorregam com estrondo pelas costas
e provocam avalanches internas
voltou a vontade
de hibernar


Ilustração: Frédéric Forest

lei do menor esforço
estou cansada da minha visão raio-x
cansada da visão peri
férica

do meu talento para a hermenêutica
da engrenagem que sobe os cantos da boca à hora marcada
da engrenagem que desvia os olhos de nós
das cordas da teia
da minha intoler
ânsia
a gente marcial
do transtorno que me causa tanta intensão
doExcessoDeFerroNoPreparadoAlquímicoQueMeMantémMaiúscula
com a boca a saber a andaimes
de skylines sem céu

a visão como todos sabem apoia-se na memória
e eu ainda me surpreendo por não saber andar de andas
e por ver com olhos de pássaro mas as paisagens de dentro
estou cansada de viver por dentro das coisas
de lhes saber o fim das frases
estou cansada de f
ases
quero regressar à fisiologia dos dias
tecer-me toda com fios redondos
e experimentar de novo a vertigem inebriante
que é rodopiar ao espelho 
numa 
saia 
nova
































Fizeste-me uma cama de gato com feixes de laser, cordas de um ringue que todos os dias me incumbira a mim mesma de desenlear, escudo de costelas invisíveis, fitas de luz em torno do maior diamante do mundo. Falso. Um diamante falso, de plástico, lindo na sua cor impossível e tóxica, made in China, chegado por mar.
Vesti o meu fato completo de neoprene preto e ensaiei os passos de ninja durante meses. Nuns dias parecia fundir-me com o chão, sem outro som para além do libertar rigoroso da inspiração que me permitisse deslizar até ti como uma folha de papel sem espessura. Uma apneia de papel que dobrava em pássaros e conchas. Noutros, porém. 
Noutros dias, ainda com o balançar da última viagem a arrancar-me os pés de terra firme, eu insistia em rocegar o fundo do oceano, no meu eterno desencontro com o tempo do mundo. Em busca de um tesouro pequeno. Um tesouro. Pequeno. Rocegava o fundo dos dias em busca do maior diamante de plástico do mundo, na esperança de que a configuração dos feixes de laser combinasse com os espaços vazios do meu corpo, uma chave de luz que me me abrisse a todos os lençóis freáticos onde achava que dormias. Engano meu. 
Voltei aos livros para confirmar se não me terei enganado também na anatomia da tua voz. Sinto que feri um ponto vital porque deixei de ouvir a minha própria respiração e sei que respiro, porque o vidro embacia quando aproximo a minha boca. Tu estarás certamente do outro lado do vidro, do outro lado das cordas, do outro lado da cama, no fim dos feixes de laser.
c oração

Num quarto sem música e
coam pequenas agressões contínuas 
Um punho cerrado contra
Um punho
Um punho serrado sangra
Um punho bate contra o peito do lado de dentro
Contra as paredes de uma página em branco
Contra as costelas 
Ninguém o ouve
Um trabalho de parto impossível
Percussão com traumatismo
Ave presa em traumatropo
Cada batimento uma morte
Cada estremecer da folha um recomeço
Ao canto do quarto
Um papel amachucado pulsa





no ano em que o meu pai morreu
morri também eu
primeiro o corpo rec
usou-se

descia estradas em ponto morto
o alcatrão como mortalha a ferver
de boca em boca
rezava por um acto de deus
por uma sombra cilindro sem condutor
que o incluísse na paisagem em rolo
comia quilómetros nuvens de fumo olhares ínvios
as palavra de ordem nas paredes cegas
eclipses de espelhos
os excrementos dos cães com donos pela trela
os sacos de compras carregados de mulheres
os sapatos dos pobres e montras de armaduras
abocanhava a descida áspera de olhos fechados
à espera
os degraus de calcário branco e negro
apedrejando-lhe os dentes
empalado por mil corri
mãos
a língua enrolada no céu da boca
nuvem de carne descar
nada
à espera
do primeiro choro
lura

pois mas isso agora que im
porta?
fechaste-te na tua cápsula do tempo
e enterraste-te cheio de coisas no jardim do miradouro
à espera de um dia em que chegasses
munido de uma vara de vedor
e te encontrasses entre dois canteiros secos
(tens de rever o teu manual de magia)

é que a ubiquidade
embora exista
não se submete a mapas sabes
não se deixa carto
grafar
e respira
a ubiquidade respira
vive das constantes manobras de reanimação
entre lugares
não sobrevive com cadáveres agarrados
ainda que tudo o resto pulse e viva
nem com sopros cardíacos
por muito que o canto dos pássaros
abafe os ruídos parasitas
pelo menos durante o dia

aí em baixo o som chega-te abafado
por camadas estratigráficas pouco permeáveis a raízes novas
e não são ondas aquilo que julgas ouvir
mas antes os passos arrastados à superfície
do teu futuro
levantando nuvens castanhas de pó
cheias de tempestades contidas

fico aqui enquanto o sol estiver de frente
depois regresso à minha lura